4/27/2005

O mundo a duas dimensões

Sempre que alguém me começa a relatar o sonho que teve na noite anterior, eu enrolo imediatamente o meu casaco/camisa/smoking (riscar o que não interessa) de modo a improvisar uma almofada de emergência.
Mas garanto-vos que o meu sonho de hoje foi tudo menos entediante.
Sonhei que tinha acordado num mundo completamente 2D. Ou seja, não havia profundidade. Esqueçam o 3D (ou 4D) em que vivemos. Éramos apenas planos e as nossas sombras projectava-se no chão de acordo com a geometria euclidiana.
Ao início ainda pensei "Fantástico! Isso quer dizer que já não preciso de fazer dieta. Já não pareço um balão visto de lado!". Mas a piada deu rapidamente origem a medo!
É que se o mundo passou a ser 2D, isso também devia querer dizer que passaria a ouvir som em mono. Afinal, se o som estéreo nos dá noção de profundidade e essa profundidade deixou de existir neste mundo, então o que isso significava é que toda a minha colecção de CD's ficou obsoleta de um momento para o outro.
Nesse momento vieram-me sons à cabeça. Flashbacks da minha mãe, na minha antiga casa, a pedir-me para lhe dar um motivo válido para alguém precisar de cerca de 500 CD's num armário.
E não soube dar um motivo válido.
Nesta situação, precisei admitir, a minha mãe tinha razão.
Se fosse um comum ouvinte, provavelmente não me faria a menor diferença. Mas sendo engenheiro de som por formação e gosto, esta situação tornou-se especialmente problemática.
E os medos revelaram-se verdadeiros. Subi pela minha rua acima, rua essa que agora não era mais do que duas linhas verticais paralelas e separadas por uma estrada plana sem subidas nem descidas.
Ora virava o ouvido direito para a frente, ora virava o esquerdo. E o resultado era sempre o mesmo. O som era igual, e a soma do que o ouvido direito ouvia com o que o ouvido esquerdo ouvia não era mais do que a soma do que o ouvido direito ouvia com o que o ouvido esquerdo ouvia. A mesma coisa, mas um pouco mais alto (6 decibéis mais alto, se quisermos entrar em preciosismos...). Já não havia profundidade, já não havia estéreo e muito menos surround.
Ao passar em frente ao Pingo Doce que se encontra à porta da minha casa, vi um segurança à tareia com dois ciganos. A cena era exactamente igual àqueles jogos 2D em que os bonecos só andam para a esquerda ou para a direita. Uma imagem horrível! Não sei se por sugestão, se por observação, mas pareceu-me até ver a imagem pixelizada!
E foi então que disse bem alto "Chega! Eu posso tolerar muita coisa! Até este 2D manhoso eu sou capaz de aguentar! Mas se há coisa que não aceito é uma imagem com baixa resolução num sonho meu!!".
O que será que motivou este tipo de sonho? Será a minha eterna aversão a tecnologias que não funcionam? Será efeito de ter passado a vida toda a mexer em botões de produtos electrónicos? Se a tecnologia faz parte de mim desde que nasci, talvez não seja muito disparatado encarar essa hipótese.
Mas nunca soube a resposta.
Levantei-me da cama com uma rapidez tal e, enquanto acreditava convictamente que nunca conseguiria colocar os chinelos àquela velocidade, já caminhava - calçado - para a casa-de-banho e a chegar a mão direita à genitália com uma facilidade quase instintiva.
"Minha nossa!", pensei, "ainda bem que o mundo ainda é em 3D. Caso contrário, como é que eu saberia se me sacudi novamente para fora da sanita ou não?".
Cá fora o sol radiava e despertava-me para um novo dia.
Nada de novo ou original.
Apenas um mundo profundo.
E com um som muito interessante.

Moral da história: esta parte da "Moral da história", por vezes, leva tanto tempo quanto toda a mensagem que sucedeu... Logo, deixo uma questão filosófica. O que terá mais qualidade literária? Toda uma mensagem que levou quinze minutos a escrever? Ou uma linha final que levou os mesmos quinze minutos?

Pensem nisso, suas vítimas da moda...


Final Fight.

Um exemplo de um clássico 2D nascido em finais dos anos 80