1/03/2005

A minha passagem de ano

Os meus pais decidiram partir em busca de uma juventude há muito perdida e fugiram para Paris. A minha mulher foi com os pais para um bailarico na terra deles, em Aljezur. O meu irmão decidiu ficar em Londres, onde se encontra a viver, para passar o reveillon com a namorada nova numa festa qualquer. Grande parte dos meus amigos organizaram encontros e festas repletos de comidas, drogas e bebidas.
Eu fiquei sozinho com um bom jantar, ao qual gostaria que se tivesse sucedido um bom filme.
Porém, acabei por passar o meu fim-de-ano no Hospital de Santa Maria.
O meu avô sofreu uma infecção nos brônquios nesse dia. E como a minha avó não tinha condições para o levar ao hospital, fui eu o motorista designado.
Foi uma noite diferente e emocionalmente conflituosa. Enquanto me sentava ao lado da cama onde o meu avô havia sido internado e o ouvia dizer que aquilo era a morte a chamar por ele, olhei em volta. Na sala onde nos encontrávamos estavam mais umas quatro ou cinco pessoas, estando a sua privacidade "assegurada" por uns horríveis biombos de tecido branco semelhantes a cortinas de duche com armações em ferro. Sempre achei o ambiente dos hospitais algo de horrendo mas, neste dia em especial, o hospital parecia-me ainda mais tenebroso. Parecia excluído do tempo. Lá fora, metade do mundo soltava gritos de alegria e satisfação pela chegada iminente de 2005. Lá dentro, os gritos eram de dor e desespero. Todo o ambiente se assemelhava a uma versão rasca de uma série do Laars Von Trier.
Quase que não dava pelo ano a passar, não fosse o chavascal feito por dois ou três enfermeiros num cubículo qualquer onde viam um programa do Herman José.
Fui para a rua fumar um cigarro. Não sabia bem como me havia de sentir. Em frente ao hospital, os carros passavam a apitar alarvemente. E quando não passavam em frente ao hospital, ouviam-se à distância. Por trás de mim, apenas ouvia berros de dor, choros desesperados e olhares assustados de familiares de acidentados recém-chegados às urgências.
Eu nunca liguei muito a passagens de ano e reveillons, mas consigo compreender a alegria eufórica e meio irracional a que as pessoas se entregam nessas noites. A sensação de que nos foi dada mais uma oportunidade para endireitar a vidinha. "É este ano que vou deixar de fumar", "É este ano que vou perder 20 quilos", "É este ano que vou aprender a amassar pão de centeio". E nós festejamos, alegres e patéticos, sem saber bem porquê.
Eu não festejei. Noites houve em 2004 que ninguém me conseguiu parar quieto, de tão excitado e "celebratório" que estava! Mas nesta noite específica de 2004, sabendo que 150 000 seres da minha espécie bateram a bota debaixo duma onda gigante, ouvindo os gritos de dor no interior de um hospital e chegando à conclusão que aquela merda deve ser assim todas as noites... peço desculpa mas não senti vontade de celebrar fosse o que fosse. Que se foda 2005, que se foda o final de 2004, que se foda toda a gente que sentiu vontade usar a buzina do carro quando passava em frente ao hospital!
Bem, na realidade, tudo isto é treta. Passei o fim de ano em casa com a minha família mais próxima e não coloquei sequer o pé num hospital. Estive no calor, num ambiente familiar, luzes cuidadosamente trabalhadas de acordo com a época festiva e iguarias gastronómicas a condizer.

Mas acredito que a história que escrevi seja a história de alguém que tenha dito adeus a 2004 dolorosamente. A todos os portugueses e portuguesas que assim passaram o seu fim de ano, os meus sinceros pêsames. Hoje foram vocês, amanhã somos nós.

Moral da história: nem sempre as mensagens nos blogs têm de ter piada. A primeira mensagem do ano, por exemplo, pode ser séria e profunda.

Pensem nisto, seus renovados dois-mil-e-cinqueiros...